quinta-feira

Cortemos as árvores! Nossos riscos diminuirão

Diario de Marília 
Há ironia nesse título, mas seu propósito é o de convidar o leitor para uma reflexão.
Por isso, temos que considerar que a realidade atual da humanidade precisa ser compreendida como consequência das concepções e das decisões que assumimos historicamente. O trabalho técnico, por exemplo, decorre de uma opção de desenvolvimento civilizatório. Contudo, sua trajetória levou-nos ao divórcio com a natureza selvagem, dentre outras possíveis: desmatar a floresta, para cultivar a lavoura; estocar os alimentos, tornando-se sedentário; fabricar a casa, abandonando a caverna etc. As estradas, as cercas, os descampados demarcaram a distância entre esses ambientes cada vez mais discrepantes. Tais adaptações marcaram a racionalidade humana que distinguiu o homem do animal (irracional). A selva tornou-se o lugar dos bichos e de culturas inferiores.
O comportamento civilizado definiu sua própria estética: o cenário urbano. A cultura humana progredia para adotar práticas e construções cada vez mais complexas, como: a higiene, a assepsia, as moradias, as iluminações, a comunicação nas mídias, a euforia dos relacionamentos intensos nas metrópoles. Esse modo de vida consolidou as belas arquiteturas, os hábitos sofisticados, como para se alimentar, trajar-se com vestimentas exóticas e luxo, estatutos metodológicos científicos que, supostamente, decorram do bom uso da razão. O uso da razão impôs o ritmo da evolução, determinou a verdade de todo o conhecimento, o justo, o legítimo.
O homem cosmopolita afastou-se da floresta. Só retorna a ela em incursões esporádicas, para pesquisas científicas, exploração de riquezas ou mesmo para lazer (radical). Evitar o desconhecido ou a diversidade significa cuidado, sabedoria, prevenção ou medida de segurança. O ambiente urbano foi adaptado como lugar seguro, organizado, regido pelas leis do Estado, nas diferentes instâncias dos poderes constituídos, como ideal para vivermos juntos e em paz. A razão estabeleceu os parâmetros para a ordem social, embora não seja capaz de reprimir a gana e o ardil de uns contra os outros; apesar de vivermos agrupados, também não engendrou a competência para vivermos juntos, em paz, em comunidade. Os interesses humanos não se tornaram coesos, tampouco universais, nem tiveram limites. A bondade não prevalece ao desejo de posse, nem o afeto à ambição econômica.
Mas esse relato foi retomado para lembrar que o primeiro projeto que culminou na invenção da razão foi o de eliminar o medo do encantamento do mundo, da mística do poder demiúrgico. Nessa intenção o homem delineou sua caminhada desde a astúcia até consolidar a razão. No início usou estratégias para eliminar os monstros, mais tarde passou a calcular cientificamente suas ações para banir o incondicionado.
Podemos constatar que a civilização rompeu com a pré-história, à qual não referimos memórias, mas informações resgatadas por meio de tecnologias atuais. O modelo urbano denota o rompimento entre o passado e o futuro da humanidade, pela ausência de indícios racionais nas informações pré-históricas, pelo menos como reconhecemos no cenário atual.
Deveríamos questionar a lógica que nos distanciou do mundo natural, porque talvez aí resida o motivo do mal-estar na civilização, que perpassa a vida social. A razão capacitou-nos para distinguir as diferenças, identificar os iguais, justificar as classes, estabelecer hierarquias sem, contudo, controlar o ódio, o desejo, a vaidade, a avareza que tornam os homens subjugados na sua própria espécie, mas não revelou sua lógica.
O discurso acadêmico intensificou-se pelos resultados das pesquisas. As ciências humanas pretenderam administrar os homens pelos princípios racionais. Mas tal empreendimento revelou as ideologias da dominação e da exploração. A liberdade entre os homens, embora circunscrita por contratos, na verdade não são lidas, porque ideológicas, não coincidem com o projeto civilizatório.
Mas o que tudo isso tem a ver com cortar árvores?
Uma árvore, quando muito, até pode suscitar a lembrança da existência da floresta. Várias árvores juntas poderiam consolidar no imaginário o regresso ao passado, do qual não temos memória, porque incondicionado. Mas a intensidade da ação natureza remete-nos ao desconhecimento. Os sons dos ventos, o retumbar de trovões, a tempestade incontida denotam nossa fragilidade frente à força da natureza. As intempéries da natureza ecoam poderosas e supostamente impiedosas.
Talvez não seja por acaso que nas cidades cada vez menos se encontrem reservas florestais. Ainda que a economia sustentável pretenda ensinar que podemos explorar as florestas, toda ação nesse sentido é de devastação, reduzindo a diversidade da vida no planeta. O mundo natural está sendo extinto sem que tenhamos chegado perto de compreender o sentido da vida.
Poderíamos entender que a razão está extinguindo a vida no planeta. Contudo, é mais evidente que o medo foi potencializado pela razão, porque esta não dominou, nem extinguiu o medo. A razão que criou a ciência não controlou a violência, nem debelou o medo, como pretendia seu projeto inicial. A evidência disso é que os espectros que se assemelham ao ambiente selvagem provocam-nos a insegurança, logo a ação humana intercepta este curso, a seu modo. Utiliza a tecnologia produzida racionalmente para destruir extinguir o medo.
Convidei o leitor a pensar em uma ação deliberada em nossa cidade, no final de junho passado. Desde o início desta atividade até hoje, já foram ceifados a metade dos 80 pinheiros que serão derrubados na Fazenda Cascata. O corte destas árvores foi justificado pela insegurança de se morar próximo a elas. As árvores cresceram muito, chegando a atingir 35 metros de altura. Avaliaram que a ação dos ventos sobre elas poderia ser fatal aos moradores da proximidade.
Algumas pessoas fizeram-me acreditar que preservar a natureza significava preservar a vida. Por paradoxo, passo a entender que viver perto da natureza significa risco de morte. Assim, ao caírem as 80 árvores, com o auxílio da tecnologia humana, a cidade dormirá mais tranqüila, pois os riscos oferecidos por elas serão extintos. Os discursos racionais nas vozes de especialistas afirmam que estas são árvores exóticas, suas sementes foram importadas do Canadá. A prioridade é a vida humana, além disso, a lei proteja espécies nativas. Nasceu fora do seu país pode ser morta.
Entendi que pela ciência hoje as vidas geradas fora do seu habitat natural compõem um cenário impróprio. Estas árvores não precisam ser protegidas, ainda que tenham 36 anos, que produzam cheiros agradáveis, que amenizem a temperatura local, que outros seres vivos se utilizem delas para transitar (uma família de 14 saguis, pássaros que pousam para descansar), estes dados não são suficientes para que tais árvores continuem vivas.
Talvez o medo produza a insegurança e pensamos a vida de maneira hierárquica e por prioridade, os outros não significam. O homem dominou a natureza pela razão, cuja lógica define o que é correto no cenário urbano. Os pinheiros reunidos romperam com a estética urbana, lembram florestas, portanto são desnecessários.
Acredito que não precisamos de mais motivos racionais para entender porque está ocorrendo a mudança no cenário da rua Cincinatina, no bairro Maria Izabel, em Marília, com o corte dos 80 pinheiros canadense, plantados há 36 anos, na Fazenda Cascata, à beira do muro, próximo a casas.

Antônio dos Reis Lopes Mello é Doutor em Educação, diretor da EE Bento de Abreu Sampaio Vidal e Professor da Universidade de Marília – Unimar

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